A história de João Cândido demonstra que nunca fomos pacíficos
Notícia publicada dia 24/06/2020 14:01
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“Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate.”
− João Cândido
Incrível como seguimos a tradição de supervalorizar as narrativas e as práticas que surgem nos países imperialistas e ignoramos as histórias de resistência que ocorreram dentro da sociedade brasileira. O assassinato brutal do afro-americano George Floyd por um policial branco, em Minneapolis, desencadeou enormes protestos nos Estados Unidos e se espalhou por outros países. Isso tem provocado diversos debates sobre o racismo estrutural, que influencia diretamente no genocídio da população negra, como alertou a jornalista e doutora em comunicação Rosane Borges. “É preciso que com esses episódios a gente deixe de encarar o racismo como um fenômeno, um episódio, e encarar ele como algo estrutural. Nós como sociedade brasileira temos que reconhecer que o racismo faz parte do cotidiano em ações letais, como o racismo polícia.”
No Brasil, alguns protestos aconteceram e a imprensa resolveu dar maior atenção ao tema com entrevistas, documentários e denúncias. Nesse contexto, observamos a insistência na comparação entre os movimentos negros afro-americanos e afro-brasileiros. As indagações buscam respostas sobre o porquê de os afro-brasileiros serem “pacíficos” em comparação com os afro-americanos, mas esses questionamentos são totalmente inadequados. As construções históricas, desde a escravidão até as particularidades do racismo como prática social, são muito diferentes. A resistência dos negros na cultura brasileira sempre esteve presente. Assim sendo, rememorar o legado de João Cândido é uma oportunidade de desconstruir o pensamento de que somos pacíficos.
Há 140 anos nascia o Almirante Negro
João Cândido Felisberto nasceu em uma fazenda no município de Encruzilhada do Sul, no Rio Grande do Sul, no dia 24 de junho de 1880. O país estava ainda sob o período escravagista, mas por causa da Lei do Ventre Livre não foi escravizado. Aos 14 anos de idade, entrou para o Arsenal de Guerra do Exército, depois esteve na Escola de Aprendizes de Marinheiros e em seguida foi enviado para a 16ª Companhia da Marinha, onde permaneceu até a expulsão. Todo esse processo durou 15 anos, com avanços e retrocessos na carreira militar.
Naquela época, a chibatada era uma das práticas punitivas e o tratamento dispensado aos marujos carregado de humilhações: péssima alimentação, baixos soldos e castigos desumanos. Cabe ressaltar que os negros eram a maioria dos marujos, e a negação da humanidade desses homens estava muito presente, decorrente da mentalidade escravista da recente abolição da escravidão (1888). No entanto, a despeito dos obstáculos, João Cândido adquiriu vasto conhecimento e habilidades durante o tempo em que esteve na Marinha, conheceu litorais brasileiros e navegou por alguns continentes.
Os acúmulos de recorrentes violências estimularam a revolta dos marujos. Depois de algumas reuniões estratégicas, organizaram-se e, entre os dias 22 e 27 de novembro de 1910, dois mil e trezentos marujos tomaram quatro navios de guerra. Os revoltosos apontaram os canhões para o Rio de Janeiro, na época, capital do Brasil. Eles exigiam a abolição dos castigos corporais e caso não fossem atendidos provocariam um bombardeio na capital. O governo do marechal Hermes da Fonseca não encontrou alternativa e cedeu aos marujos. Chibatadas na Marinha, nunca mais! O episódio ficou conhecido como Revolta da Chibata.
João Cândido foi reconhecido pelos pares como líder da revolta, e a alcunha de Almirante Negro surgiu em meio aos noticiários. De alguém desconhecido, tornou-se o nome mais comentado na sociedade angariando admiradores e desafetos. Apesar da vitória dos marujos, a suposta anistia acordada pelo governo resultou em repressão aos rebelados: expulsões, prisões, trabalho escravo, etc. O Almirante Negro foi colocado em condições degradantes como prisioneiro na Ilha das Cobras, Baia da Guanabara, e submetido a violências, ausência de água e alimentos. Depois de sobreviver ao sofrimento, foi considerado louco e internado no Hospital Nacional dos Alienados, retornando à prisão meses depois. Em 30 de dezembro de 1912, teve a liberdade concedida, entretanto, foi excluído dos quadros da Marinha.
A vida de João Cândido seguiu permeada por dificuldades econômicas, tragédias familiares e olhares enviesados que ainda o considerava subversivo, conforme relatou ao Museu da Imagem e do Som (1968). “E daí para cá, caí na penúria, no ódio. Passei a viver na vida civil. Muito perseguido pela Marinha”. João Cândido foi casado por três vezes e teve onze filhos. Em 6 de dezembro de 1969 esteve hospitalizado no Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e faleceu acometido por um câncer no intestino.
Texto: Ricardo Corrêa – Alma Preta